22 fevereiro 2010

Aula de desenho - tempo antes do tempo

Seu movimento era lento enquanto desenhava. A sobreposição de camadas e camadas de grafite para formar a massa de cor e a textura como devia ser. Um olhar eventual para seu modelo. Os músculos da mão estavam tensos e uma veia grossa corria sobre o músculo do braço, formando um desenho geográfico de rio. Seu olho se concentrava e a pupila ocupava pouco espaço no disco verde da íris. A expressão que pulsava da imagem se refletia nele, como se sua mente só encontrasse descanso no desenho.

Do outro lado da sala, o cabelo caia sobre o rosto. A mesma delicadeza com mais velocidade, havia algo de parecido no modo como os dois desenhavam. Mestre e pupilo, de algum modo. Os olhos castanhos tinham uma seriedade vaga enquanto o desenho se formava, mas eram um sorriso enquanto mostravam o pequeno esboço completo. A penugem grossa do braço corria para as costas da mão e os dedos ficavam mais relaxados enquanto corriam pelo papel.

Em outro ângulo, a magreza evidente deixava ainda mais sinuosos os movimentos. A concentração deixava ver a obcessão que corria sob aquela pele. A busca por uma perfeição, talvez. Cofiava a barbicha e tinha sobrancelhas de elfo. Seu olhar era tão firme que causava um calafrio quanto se fixava nas nossas costas. Ele falava enquanto desenhava, uma voz baixa e firme, orientadora.

A cabeça apoiada na mão deixava ver um ar eternamente entediado enquanto desenhava. Havia capricho e técnica, os movimenhtos estudados e precisos se cobriam com aquele ar displicente, mas havia ali um domínio do que estava sendo feito. Brincava com o pierging e se distraia fácil.

Lutava contra o papel, claramente. As vezes, traia algum desespero. Mas a beleza que emanava dela era suficiente para esquecer qualquer coisa, e no final do tempo, teria progredido tanto quanto os outros, ou quase. Mas havia aquela urgência, aquele tremor que estava ali, e ela pulsava de vida.


Eu rabiscava poemas aleatórios pelas bordas do papel que eu agredia com a violência que acompanha meu desenho, menos técnica do que deveria ser, mas escutando atenta o que os três primeiros sempre tinham para me mostrar. Eles elogiavam minha expressão e eu compensava minhas falhas com a paciência com que eles me ensinavam, ansiando ser sempre melhor, e me distraindo enquanto olhava para eles, me apaixonando não pelos homens, mas pelo jeito como tocavam grafite contra o papel, a cada aula, deixando o sentimento esvair quando a sineta marcava a hora e a modelo se embrulhava no seu robe.

(07/dezembro/2008)

20 fevereiro 2010

As Vezes

As vezes eu sei que meus olhos são mais duros do que eu gostaria. E que eu tenho um frio na voz que mata os outros. As vezes eu sei que sou quase má. Mas as vezes, eu gosto. Gosto de ser marcial e ao mesmo tempo, ter uma malícia. De ser rígida e de repente romper a gargalhada. E que minha gargalhada não tem limite nem sentido, e fere sem dó tanto quanto dá prazer. E as vezes, eu me acho bonita assim, tanto gostando de machucar quanto de dar prazer.

Gosto de olhar para mim e ver o que está além. E de ver atrás das pulseiras e do anel um outro brilho. Gosto do jeito como seguro o cigarro quando me entrego a vida. Gosto do jeito como fecho os olhos enquanto escuto histórias.

As vezes sinto em mim feitiços de serpente. E as vezes é só como se eu fosse uma corrente de água descendo pela montanha, afogando tudo que existe no caminho. Eu incluso.

E adoro.

As vezes isso me dá medo. As vezes eu me lembro que é da minha natureza que o fogo evapore a água e que eu sou feita de neblina e vendaval. E eu rio alto, sem medo. E meu olho tem um brilho de predador nessa hora. E eu me felicito com quem eu sou. Com tudo que eu sou. Cada sombra e cada morte. Cada marca e cada desenho que a pele forma.

E as vezes eu não sei onde eu termino e começa a sombra. E não sei onde termina a dança e começa a fuga. As vezes meu olho brilha e não sei se sou criança ou se sou um monstro fatal.

As vezes sou só mulher. As vezes, sou mais.

As vezes gosto do tom rouco da minha voz, e acho sensual falar assim, principalmente falando com mulheres. As vezes tenho vergonha e fico sem falar. E quando a voz surge, é forte e alta e poderosa. E quase me dá medo. Mas eu gosto. Gosto de ver o medo nos olhos das outras pessoas.

As vezes eu assusto. As vezes me derreto. Tem horas que sou só uma menininha andando pelo meio fio da rua, colhendo ramos de ipoméia e tecendo coras sem jeito com eles. Mas as vezes, é a filha da rainha Mab que tece coroas de trepadeiras de flores brancas e suspeitas, e olha como quem sabe de coisas venenosas e proibidas que brotam nos jardins.

As vezes, eu fumo meus cigarros e me escondo sob o cobertor, com medo do amanhã. E as vezes, eu me entrego gloriosa ao ar da noite, venerando o ato de estar viva e dançar entre as serpentes.

Tem horas que as flores que ramejam pelas minhas roupas parece que se mexem, e suspiram, vivas. E nessas horas eu me lembro que é melhor respirar mais devagar e segurar o grito, antes que seja tarde demais para me lembrar que amanhã é uma segunda feira e eu preciso ser uma menina comportada e ir dormir...

(05/outubro/2008)

transcendências

Já sabia que estava ferrada quando olhou pela janela em movimento e recebeu a mensagem. Porque como sempre, imergiu naquilo. E eram tantas, tantas flores, e era o movimento das plantas, o crescer das trepadeiras, e tudo aquilo que amava e que a toma como se a afogasse. Ela sabia que estava ferrada, enquanto o micro ônibus corria pelas ruas e ela transbordava aquela beleza indefinível, a luz invernal do fim da tarde e a diferença entre o selvagem e o urbano, a beleza urbana difícil de se ver as vezes, escondida no asfalto.

No metrô, era difícil se focar, porque a mente fugia. Ela lutava contra si mesma tentando ser focada, concentrada. Então, desceu do metrô - e a avenida era a coisa mais bonita que existe no mundo.

Como explicar os faróis e o ruído, o lusco fusco, aquele momento separado do tempo comum, a beleza fluida e inebriante da cidade... e ela tentou evitar, mas não pode, e se viu tomada por aquilo, tomada pela beleza da cidade. E não importava por onde tentasse se orientar, seus passos iam e voltavam mesmo que ela continuasse em frente, e ela era quase invisível.

E naquela hora ela soube que não adiantava lutar. Parou na banca de jornal. Comprou cigarros. Acendeu um. E foi andando devagar, deliciada e agradecida por poder enxergar tudo aquilo, deixando para lá o desassossego do atraso.


(22/julho/2009)