17 junho 2009

culpa dos sapateiros das palavras

Primeiro foram sapatinhos de verniz. Amava o brilho deles, a lembrança de bonecas e laços de fita. Achou sempre que era um injustiça que não se fabricassem sapatos de verniz para adultos. Quando viu pela primeira vez um par de sapatos de adulto com aquela aparência de sapatinhos de boneca, comprou com avidez. Ela e a amiga, sentadas nos cacos de cerâmica vermelha do piso da faculdade, comparando os sapatos de boneca que elas mesmas vestiam, como se tivessem, súbito, cinco anos de novo.

Olhando para as fitas que prendiam os sapatos podia pensar que sua vida era medida por eles. O tempo dos sapatos de verniz, o tempo dos tênis de lona. O tempo dos coturnos e dos saltos Luis XV. O tempo que se dobrava em sapatilhas, sandálias rasteiras de couro vindas do nordeste. Sua vida poderia ser contada por seus pés, como se estes vivessem a parte do resto do corpo, ignorando todo o resto.

Tempo inclusive de chegar em casa descalça, pisando de leve nas meias atoalhadas para não fazer barulho.

Não são os pés o foco, mas o que os recobre. Como revestir esses pés e como mostrar para quem olha quem se é? Um sapato diz mais do que todo o resto da roupa.

Tempo de sapatinhos tricotados. Pantufas coloridas. Centenas de All Stars se acumulando - maldição de sapato que dura pouco e se gosta tanto. Botas de inverno. Reconstruções históricas. Pelúcia, couro, napa, algodão, lantejoulas. Solado de corda, borracha, plástico.

Olhou os pés. Descalços, sem espelho ou mostruário. De quem eram aqueles pés depois de tantos sapatos?

Um comentário:

Edson Bueno de Camargo disse...

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