23 dezembro 2008

solstício

Enquanto acendia o fogo, reparou que alguma coisa estava estranha na pedra que escolheu como base para a fogueira. Parecia que muitos outros fogos já haviam queimado ali - e olhando agora, não parecia coisa de campistas. Circulos e espirais corriam por toda a pedra, agora iluminada pelas chamas azuladas. No carro quebrado, seu cachorro deu um uivo longo que a deixou preocupada. Quando abriu a porta, ele correu em disparada para dentro da floresta. Ela suspirou enquanto a sombra branca dele desaparecia entre as árvores, mas o medo se se perder também falou mais alto. Começou a limpar o chão em volta do fogo - não queria provoca rum incêndio. E só então reparou no círculo de pedras brancas. E nas pedras chatas que agora pareciam assustadoras, enquanto vaga lumes se amontoavam pousando nelas.

O ar estava coalhado de vaga lumes.

Ela deu um passo para trás, e quase pisou nas chamas. De repente, um barulho de guizos pareceu tomar o ar no escuro da floresta. E flautas. E um grito - ou era uma gargalhada?

Desorientada, ela girou na direção do carro. Mas então ela O viu.

É necessário um O maiúsculo para falar dele. Porque é assim que acontece nas fábulas quando encontramos um rei - ou o filho do rei. Não se parecia com um príncipe encantado. Mas sua pele tinha um tom dourado e seu cabelo caia sobre seus ombros de um modo sensual e bonito. E a roupa dele que não era muita, diga-se de passagem - era de um tom que lembrava vinho claro e rubis.

Ela percebeu nessa hora que se mover não parecia tão fácil como deveria, como se o estranho que andava em sua direção a tivesse hipnotizado. Ela percebeu com o canto dos olhos que havia movimento entre as árvores.

Dança.

Sátiros dançavam entre as árvores - vinha deles o barulho dos guizos e das flautas. E as próprias árvores pareciam libertar mulheres feéricas que dançavam também. E os vaga lumes, ela percebia agora, mesmo sem poder ver, estavam dançando também, e maiores.

Quando ele a pegou pela mão, ela fez uma reverência antiga e desconhecida que a surpreendeu, e começou a dançar. E de repente, o pequeno espaço em torno do fogo era um grande salão de danças. E havia um banquete, e o vinho e o mel corriam como água.

Ela dançou com o estranho a noite toda. E quando o dia rompia, ele a beijou e partiu. Ela não teve dúvida alguma sobre correr atrás dele.

Mas já era tarde, ele foi embora.

Ela sentou ao lado do fogo que se apagava dentro do círculo de fadas. Seu cachorro, mancando, arranhava a porta do carro. Ela estranhou o capô aberto, e chegando lá, fios de prata e teias de aranha cobertas de runas faziam seu motor funcionar libertando um perfume que lembrava as acácias.

Ela pensou se deveria partir ou ficar.

Suspirou.

Chutou alguma coisa sem querer. Uma flauta. Um rubi. Uma taça. Uma pedra, Uma serpente. Um cesto. Ela não poderia nos dizer que forma tinha a chave, mas ela sorriu como uma mulher não sabe sorrir. Mas as fadas... bom, as fadas, as vezes, acham o caminho de casa.

verdes muros

o vento corre sobre a grama. o grilo se esconde entre os brotos da azaléia, e o rosto foge do sol entre um sorriso e o silêncio. o vento corre sobre a grama, mas a mulher flutua, do alto dos degraus onde se deita. a fumaça é um abrigo quente e úmido, e ela afasta o pensamento que a levou até ali porque não é hora de tristeza tampouco de permitir que alguém fora daquele verde se enfiasse na conversa. Aquela hora era somente dos presentes.

As carpas rabeiam na água, algumas ariscas, outras mansas. O conhecimento cobra o preço no que é pequeno, quando nos vemos fazendo algo só porque sabemos que é possível. Mas ele ri enquanto faz carinho nas costas de uma carpa que parou disposta a receber um afago.

Ela se entrega ao prazer de não ser responsável por nada. Nem pelo sorvete, nem pela chegada, menos ainda pela partida. Queria tomar sorvete. Devia ir embora antes que ficasse muito tarde. E se entregou em confiança ao momento e ao imenso prazer que sentia em ser levada por marés, guiada por mãos gentis, como se a suavidade de uma voz fosse a bússola. Como se todos os homens do mundo fossem Athos.

O muro atrás do parque foi pintado de verde. Ela olhava aquilo com curiosidade, como se pintar de verde tornasse menos muro o muro. Ela se sentiu mal pensando que ele continuava sendo um muro. Continuava ocupando a visão, delimitando um final. Mas então se mexeu para acender o cigarro e olho o muro por cima do silêncio dele deitado no chão. E olhando através do silêncio, ela foi obrigada a concordar que o muro era menos muro por ser tão verde.

pedaço de pêssego

Lá fora, a chuva é um som distante e um esmalte cor de café que insiste em ficar colado na lembrança daquela tarde.
A própria noite parecia ter aquela cor. Como se não fosse noite ainda e já tivesse deixado de ser dia, um anoitecer cor de café. Pensou na lata de pó para fazer capuccino dentro do armário, mas só pensou. Estava muito longe.

Mas acabou o açucar. A frase surgiu na mente e ela divagou no som que as palavras tinham. A-ca-bou---o---a-çu-car. ca-pu-cci-no. Pensou no duplo c da palavra capuccino. Era um som tão agradável que ela não sabia se matava a sede ou se dava vontade de beijar alguém.

Preferiu pegar água gelada. Não havia ninguém na casa. Se beijasse seu velho gato, o pelo daria cócegas no nariz.

Riu, sem se preocupar em rir alto, porque não havia ninguém para olhar. Não havia motivo para se preocupar com opiniões. Ali, era selvagem e rainha e seria também mendiga se quisesse, esmolando carícias, era seu território. Os azulejos branco e pretos a olhavam de volta com seus pequenos reflexos. E ela se sentiu feita de luz. E a chuva caiu mais forte, virou um som que ocupava sua mente e batia nos vidros. Ela olhava as gotinhas que se acumulavam no beiral, levando junto grãos de poeira e folhas miúdas. Encheu o copo de água gelada, e ficou parada olhando a chuva. A sombra da chuva batendo no vidro brincava nos seus braços.
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Lento, um pensamento se infiltrava na sua mente. Uma idéia boba qualquer sobre ir embora, abandonar tudo, país, emprego, profissão, ir para outro lugar. Procurar coisas que não sabia o que eram, mas ainda assim faziam falta. Mandaria postais da Turquia aos amigos e alugaria uma caixa postal quando chegasse em Praga.